Sempre me impressionou a imagem pública das agora antigas administrações do BCP. Era a descomunal mesa da sala de reuniões do próprio conselho e a sensação de omnipotência que dali emanava; ao pé daquilo, o Conselho de Ministros parecia a direcção de uma colectividade de recreio. E eram os computadores. Aqueles banqueiros não encaravam ninguém de frente - falavam entre si e entreolhavam-se protegidos pelos ecrãs, como seres mais do que humanos que essa barreira separava do mundo dos mortais. O poder absoluto da banca em todo o esplendor. Parecia que aqueles homens controlavam o próprio NIB de Deus e que o Altíssimo os inspirava, via Messenger, através daqueles majestosos computadores. Até que se começou a investigar que afinal as contas não estavam no Paraíso mas sim no Purgatório do off-shore. No espaço de semanas, foi a pequena colectividade recreativa que passou a ditar as leis à imponente instituição bancária.
A história já foi por de mais contada. Mas permanece opaca. Demasiadas perguntas continuam sem resposta e demasiadas atitudes permanecem sem explicação. Que transparência há nesta nova administração que ganha o banco com uma soviética margem de 97 por cento, mas mal se dignou a expor as suas ideias à assembleia que a elegeu? O que levou a Caixa Geral de Depósitos a financiar accionistas como Joe Berardo, que durante meses denegriu publicamente o BCP? Será essa uma forma correcta de um banco público intervir? Como pode uma instituição como o Banco de Portugal ao qual escaparam as irregularidades recomendar depois a exclusão indiscriminada de todos os administradores num prazo de oito anos? É aceitável que um ministro das Finanças, cujo registo foi sempre inequivocamente sério, tenha falado em polícias e ladrões? Podemos admitir a partidarização descarada do jogo económico, expressa pela transição de Armando Vara para o BCP e pela forma disparatada como o PSD reivindicou (e conseguiu) a presidência da Caixa Geral de Depósitos?
A oposição de centro-direita conseguiu mesmo colocar em pé de igualdade a partilha de um banco público e de um banco privado. Nada mal para quem quer ser a favor do mercado. Mas isso não é de surpreender, quando tem um líder que dedica o seu tempo de antena a propor colunistas para falarem nas televisões... Talvez tenha estofo para director de programas, nunca se sabe. Seja como for não será certamente esta oposição comprometida que ajudará a escrutinar um jogo de segredos e de verdades escondidas.
Entendamo-nos: não é necessariamente absurdo que o Estado intervenha numa instituição bancária em crise. No Reino Unido soube-se ontem que o Governo trabalhista admite a hipótese, controversa, de nacionalizar o banco Northern Rock. Não se sabe se o fará, mas admitiu-o. Em Portugal, ninguém admite nada, tudo se passa à porta fechada e sem prestar contas ao público. Velhos hábitos que persistem nesta West Coast of Europe.
Não deixa aliás de ser curioso que nunca se relacione a situação no BCP com o que está a acontecer na banca internacional, por causa da crise dos subprime. Diz o bom senso que não poderia haver pior altura para o BCP ter estado exposto desta maneira ao longo de quase um ano... Bastaria lembrar os resultados desastrosos apresentados pelo Citigroup no mesmo dia em que decorreu a assembleia geral na Alfândega do Porto. Será a banca portuguesa excepção?
Há muito por contar nesta história... Agora que é Armando Vara quem tem acesso ao NIB de Deus, tudo parece ter ficado tão opaco como no tempo em que Jardim Gonçalves e os seus falavam por detrás da muralha de computadores.
Fonte: Publico.pt, de Miguel Gaspar
Destaques da minha autoria
PS. Há muito tempo que um título de jornal não me fazia rir tanto
4 comentários:
Deves andar muito ocupado, deves! A postar às 10:30 da manhâ. Não se trabalha às quintas aí?
Não sei donde veio o post anterior mas, pela mesma lógica, vejo que também não se trabalha muito por aí... Algum anestesista ocupado? Uma das vantagens de ser investigador é a de se poder fazer uma gestão personalizada do tempo de trabalho!
Para sorrires,
http://www.youtube.com/watch?v=xuZl9tRqjoQ&feature=related
Ainda sobre este assunto...
Questões de moral, de pudor, de dinheiro e da crise que aí está
Para grandes males, grandes remédios. Ou como as sugestões de um economista liberal poderiam inspirar a actuação do socialista Vítor Constâncio
Muitos foram os que se indignaram com as referências do Presidente da República aos salários de alguns gestores. Que tinha Cavaco Silva que ver com o que as empresas pagavam ou não pagavam aos seus gestores? Nada, defendeu-se um pouco por todo o lado.
Não foi o que se escreveu nesta coluna. Não por se pretender julgar as empresas e os seus critérios, mas por se entender que um dos requisitos para o progresso das sociedades é o seu capital social. E explicou-se porquê: "Se as leis podem evoluir para controlar os excessos, o mais valioso capital social de uma comunidade está para além das leis, está nas regras de comportamento não escritas que tornam insuportável aos seus membros conviver com o excesso de injustiça. Ou ser parte dessa injustiça."
Ao contrário das aparências, esta é uma posição liberal, defensora de uma economia de mercado que se autolimita pois sabe que os excessos lhe são prejudiciais. Tal como é uma posição liberal aquela que o mais renomado dos colunistas do liberal Financial Times, Martin Wolf (autor de um livro que é porventura a mais magistral obra da globalização jamais escrita), defendia na sua coluna desta quarta-feira. O título era elucidativo: "Os reguladores devem intervir naquilo que ganham os banqueiros." Por outras palavras: Vítor Constâncio devia ter uma palavra a dizer sobre os vencimentos praticados no BCP, as reformas outorgadas pelo BCP (como aquela de que beneficiará o seu anterior presidente, Paulo Teixeira Pinto), as indemnizações que o BCP está a pagar aos seus antigos quadros.
Porquê? Primeiro, porque os bancos não se têm portado muito bem a nível global. Só nas últimas três décadas, houve 100 crises bancárias importantes e, sublinha Martin Wolf, "nenhum outro sector da actividade tem idêntico talento para privatizar os ganhos e socializar os prejuízos". Ou para conseguir que as autoridades públicas venham em seu socorro (no Reino Unido já se fala de nacionalizar o Northern Rock, o banco apanhado pela crise dos empréstimos de alto risco...).
Isto sucede porque uma crise no sector bancário pode devastar por completo uma economia, o que não sucede com a maioria dos outros sectores, fazendo com que os governos e os reguladores sintam que têm de fazer tudo para os salvar nos momentos de aperto. A obsessão com a "estabilidade" do sector vai ao ponto de se ter chegado a extremos de "prudência" - usemos este singelo eufemismo... - como os que hoje relatamos na relação entre o Banco de Portugal e o BCP a propósito da utilização indevida de off-shores.
Daí que, e passamos a citar, Martin Wolf tema "que a fragilidade do sistema financeiro e os enormes lucros e prémios que gera para quem está lá dentro acabem por destruir algo de muito mais importante: a legitimidade política da economia de mercado". Logo, para grandes problemas, soluções radicais.
Oeconomista socorre-se então de outro economista, e de muito peso, nada menos do que um antigo economista-chefe do Fundo Monetário Internacional, Raghuran Rajan. A sua tese é simples: os diferentes mecanismos de regulação serão ineficazes se os peritos em gerar lucros de curto prazo (e alto risco) continuarem a ser remunerados em função desses lucros exponenciais. Isso levá-los-á a assumir riscos crescentes - e repare-se nos riscos que muitos dos nossos banqueiros estão a assumir quando financiam irresponsavelmente o consumo de clientes sobreendividados - até que, aqui ou acolá, rebentem as bolhas de quem exagerou mais.
Suspeito que Martin Wolf não deve conhecer os pormenores do que se tem passado no BCP nem estaria a discutir as remunerações aí praticadas, tal como não deve estar por dentro dos instrumentos de regulação à disposição do Banco de Portugal. Mas é difícil deixar de verificar que algumas das suas considerações se aplicam que nem uma luva ao que se tem passado em Portugal. A única diferença é que, por cá, ainda não rebentou nenhuma bolha, ainda não houve uma crise de algo equivalente às subprime. Mas andámos e andamos lá perto. Basta pensar que é mais fácil, nos dias que correm, um banco conceder um empréstimo para comprar um automóvel do que para investir num novo negócio. As taxas de juro para mandar vir um carro da Alemanha até são muitas vezes mais favoráveis do que as que têm de pagar os industriais que querem gerar riqueza em Portugal.
A acumulação de más notícias dos últimos dias - colapso das bolsas, aumento do desemprego nos Estados Unidos, crise nos mercados imobiliários (uma "bolha" contra a qual muito se escreveu mas que continuou a ser soprada pelo sistema financeiro), previsões de quebra da retoma económica na Europa, risco de inflação, sugestão de que os governos devem criar pacotes de estímulos fiscais - mostra que pactuar com uma sofreguidão egoísta e de vistas curtas, a qual perde a visão de conjunto e as referências éticas, não afecta apenas as empresas, afecta as economias e fragiliza os sistemas políticos.
Por isso, se os banqueiros ganham demais porque os incentivos que lhes dão os levam a tomar decisões erradas, se é difícil imaginar uma autocontenção quando o mercado é muito competitivo e procura desesperadamente talentos, então pode justificar-se a intervenção dos reguladores. "A simples ideia de uma intervenção deste tipo é horrível", reconhece Martin Wolf, mas "a alternativa de viver de crise em crise é ainda pior".
Só é possível estar de acordo.
P.S. - No portal Ver, animado pela ACEGE, a associação de empresários e gestores católicos, já é possível encontrar um texto onde António Sampaio e Mello defende que remunerar os gestores com base em stock-options é errado. É uma reflexão que merece ser lida com atenção e que, curiosamente, também cita Martin Wolf.
Fonte: Publico.pt
José Manuel Fernandes
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