sábado, junho 07, 2008

Alegre, o Bloco, a poesia e a fatal igualdade na pobreza

Porque os tempos não têm sido de muita inspiração, partilho palavras emprestadas de ideias partilhadas com José Manuel Fernandes, de um dos melhores textos que lhe conheço.

Bom fim-de-semana e não esquecer que já só há 37,5 horas de Serralves em Festa!

É tempo de acabar com os idealismos vazios e perigosos que pregam apenas a igualdade e se esquecem sempre da responsabilidade e, bastas vezes, da liberdade.
Não há nada como passar uns dias num país nórdico, como a Suécia, para perceber que o problema português é exactamente o oposto daquele que, em nome de uma autoproclamada "esquerda", se defendeu esta semana no comício do Teatro da Trindade, em Lisboa.
No evento, onde Manuel Alegre se juntou a dirigentes do Bloco de Esquerda, este disse que ser de esquerda "é uma imprudência", mas que era imprudente "desde a juventude" e que isso, enfim, era "uma festa". Por isso Portugal precisaria de "mais esquerda" para fazer "renascer a esperança", "a alegria" e as "canções cantadas em comum". Tudo porque "as pessoas gostam de estar juntas".
É difícil imaginar um discurso mais vácuo e sem significado concreto. Na verdade, se Alegre quiser encontrar, todas as semanas, lugares onde se juntam mais de 500 pessoas para "estarem juntas", celebrarem a "alegria", falarem de"esperança" e entoarem canções "em comum" bastar-lhe-á ir a uma missa católica. Em boa parte delas, sobretudo em algumas paróquias, é exactamente isso que acontece. E mais depressa se ouve lá o Hino à Alegria do que estrofes como as entoadas naquele teatro: "Quando a corja topa da janela/Quando o pão que comes sabe a merda/O que faz falta..." e por aí adiante. É provável que encontre lá mais "festa" e letras menos agressivas.
O exemplo serve apenas para sublinhar o vazio de uma mensagem que pode ser servida por uma voz tonitroante ou até pela poesia, mas que não ultrapassa, em última análise, o círculo vicioso de uma autoproclamada esquerda que, como disse outro companheiro de comício, José Soeiro, este dirigente do Bloco, tudo se centraria em garantir a justiça social e a igualdade. Ora, sucede que justiça social só rima com igualdade se, no discurso político, à permanente invocação de direitos se acrescentar a defesa da responsabilidade e se entender a solidariedade não como uma missão longínqua do "Estado" antes como algo que integra o dia-a-dia. Uma noite com os colaboradores da Comunidade Justiça e Paz a distribuir comida pelos sem-abrigo de Lisboa ou um dia nos armazéns do Banco Alimentar contra a Fome seriam por certo menos in do que uma noite no Lux, mas muito mais instrutivos sobre o outro Portugal que não aparece nem nas bancadas da Assembleia da República, nem nas manifestações da CGTP, muito menos nas celebrações, ou "actos culturais", do Teatro da Trindade.
Aquilo que na Suécia, só para citar um exemplo, podemos encontrar é uma sociedade onde os elevados níveis de equidade social (uma formulação mais rica e mais progressiva do que a velha "igualdade social") caminharam sempre a par com a liberdade e a responsabilidade. É por isso que custa ver Manuel Alegre sentado ao lado de militantes, como os que vieram dos partidos fundadores do Bloco de Esquerda, para quem sempre se pode sacrificar a liberdade em nome da igualdade. Em Dezembro de 1974 Alegre teve, no primeiro Congresso do PS após o 25 de Abril, um papel central na separação de águas entre os que defendiam o socialismo antes de tudo o mais e os que só entendiam o socialismo "em liberdade". O facto de estes mais de 30 anos terem demonstrado, à saciedade, que a ideia original do socialismo é incompatível com a de liberdade - ao contrário da ideia de social-democracia ou de social-cristianismo, os dois pilares sobre os quais assentou a construção europeia -, ainda há quem não entenda que "uma sociedade que coloca a igualdade à frente da liberdade acaba por ficar sem nenhuma delas, ao passo que uma sociedade que coloca a liberdade à frente da igualdade acaba por ter um grau mais elevado de ambas".
Apesar desta frase ser de um autor que dificilmente associaríamos à Suécia (Milton Friedram), a verdade é que se algo diferenciou a Suécia da maior parte dos países do Velho Continente foi o seu pioneirismo na defesa da liberdade. A Suécia já tinha uma lei que garantia a liberdade de imprensa antes de estalar a Revolução Francesa (o Reino Unido não tinha uma lei, mas tinha a prática), a Suécia esteve entre os primeiros países europeus a reconhecer os direitos da mulher e a permitir uma liberdade sexual só possível porque acompanhada por um elevado sentido de responsabilidade. Um exemplo anedótico: no Aeroporto Internacional de Gotemburgo não há casas de banho separadas para homens e mulheres, mas também não há atropelos nem abusos. E se tudo está organizado e limpo, isso não sucede porque prevalece a autoridade, mas porque não se imaginam irresponsabilidades que ultrapassem os excessos alcoólicos de sábado à noite. E a naturalidade com que, no dia seguinte, muitos se juntam numa igreja, não longe do relvado onde muitos se estendiam, em fato de banho, para beneficiar de um raro dia de calor, para contribuírem para uma obra social. Tudo antes de, segunda-feira, se apresentarem na fábrica da Volvo de forma pontual para trabalharem com rigor e elevada produtividade.
Não se pode ter sol na eira e chuva no nabal, razão pela qual enquanto se pedir apenas igualdade sem ao mesmo tempo fazer a pedagogia da responsabilidade, do trabalho e da exigência não é apenas querer-se poesia no lugar da política: é deixar-se levar em nome da poesia para a alegre pobreza. E o tempo dos pobretes mas alegretes já lá vai, felizmente.

Fonte: Publico.pt

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